Foi um grande conflito interno quando comecei a negar atitudes que aparentemente todos sentiam-se confortáveis. Nessas horas eu me sentia deslocada e perguntava se eu realmente fazia parte daquele mundo. Será que eu era a diferentona? A complicada? Não sei. Sei que a gente tem mania de ir na onda das coisas e permitir que outros pensem por nós. De aceitar porque todos já aceitaram e nós não vamos conseguir mudar o mundo. Opa! Talvez este seja o ponto: Temos medo de mudar o mundo, mesmo que seja para melhor, pois qualquer mudança, seja qual for, traz consigo os medos e as incertezas.
Vou contar um pouco do meu conflito e da minha linha de raciocínio.
Cultuamos Orixás?
Sim.
Se cultuamos Orixás é porque precisamos deles?
Sim.
Os Orixás precisam de nós?
Não. Ebós, ejé (sangue) e oferendas em geral, são barganhas e não uma necessidade deles.
Os Orixás são forças, energias da natureza ligadas diretamente a Eledunmare/Deus?
Sim.
Até aqui, tudo certo? Então vamos lá.
Os Orixás existem desde que mundo é mundo, eles nasceram quando o tempo também passou a existir. Não temos a capacidade para compreender essa existência. Se a raça humana for extinta hoje, Orixá vai continuar existindo, dentro de toda sua grandeza. Nós existimos aqui e os Orixás existem em todos os oruns.
Então agora me responda, por favor, a pergunta que eu fiz para mim mesma:
Por que Orixá coloca a cabeça ou os joelhos no chão para um ser humano?
Por que algumas pessoas, e não importa quem, se comportam como se fossem maiores que os próprios Orixás?
Não fazia sentido. Simples assim, não fazia sentido. O ato de colocar a cabeça no chão, é um ato de agradecimento à Terra pela existência daquele ser.
Fui perguntar.
_ Pai Fulado (fulano tinha uma vida dedicada à Orixá e era tratado como uma enciclopédia viva) o senhor me dê agô?
_ Claro filha! Ele disse com muita gentileza em sua voz rouca e suave e um largo sorriso no rosto.
- Meu pai, eu estava aqui com os meus parafusos pensando e gostaria de lhe fazer um pergunta, que eu espero que não o ofenda, pois não é a minha intenção.
Ele assentiu com a cabeça, ainda com os resquícios do sorriso anterior. Tomei um gole de ar e de coragem e perguntei:
- Por que os Orixás colocam a cabeça no chão para os pais/mães de santos e algumas pessoas de cargos?
Pai Fulano arregalou os olhos rapidamente e se ajeitou na cadeira devagar enquanto engolia seco a saliva que tinha na boca. Eu estava de cócoras em sua frente. Ele olhou para o lado, olhou para o outro e me disse:
- Eu não sei. Quando eu era abiã, fiz a mesma pergunta, e o que me responderam eu não engoli. Me disseram que Orixá agradecia a vinda dele para aiyè, que só tinha sido possível pelas mãos do Bàbálòrìsà/Ìyálòrìsà.
- Mas meu pai, no caso então quem tinha que agradecer não seriam apenas os filhos? Afinal Orixá não precisa de nós.
Com a palma da mão bem aberta, quase que um carinho, ele bateu duas vezes sobre a minha a cabeça, se levantou da cadeira, e eu fiquei ali no vácuo. Ele deixou claro que ele só iria até ali. Não satisfeita, continuei a buscar a resposta.
Perguntei com a mesma cautela para uma Ekede, ela me respondeu com o mesmo argumento: o agradecimento ao axé do pai de santo ter trazido o orixá para aiyè, agradecimento ao Alagbe ou ao Axogun pelo coro e pelo corte. Poxa... Um abraço não seria o suficiente? Imagine qualquer outra religião do mundo, onde o Deus(a) pede a benção do sacerdote. Um padre exigir que Jesus se ajoelhe diante dele… Não, desculpa, não fazia sentido para mim. E se para alguém, nesse mundão de meu Deus fazia, eu podia respeitar tranquilamente, mas respeitar é diferente de concordar.
O que foi que eu fiz daí em diante? Nada. Percebi que era um assunto velado, que as pessoas não se sentiam à vontade para falar a respeito. Parecia que eu estava mexendo num vespeiro. Eu apenas aceitei e comecei a admirar ainda mais os Orixás.
Percebi que a vaidade, a prepotência e a sede de poder do homem não tinham limites. Enquanto isso Orixá, no cerne de sua essência, compreende que somos seres miúdos, incoerentes dentro de nossa própria fé. Nossos Deuses jamais perdem o seu adé (coroa/realeza). Acredito que eles tenham a sabedoria e a clemência de compreender que somos falhos e pequenos, e estamos afogados na cultura do poder que criamos, e que estamos aqui justamente para sermos pessoas melhores, e que isso leva tempo.
E a cada vez que eu via essa cena se repetir, eu baixava os olhos e sentia vergonha de ser gente.
Muitos anos se passaram e eu não comentava isso com ninguém. Afinal o vento distorce as palavras, e a gente nunca sabe o tamanho que a história pode ficar. Até que um dia eu conheci uma mulher, que espontaneamente expressou a mesma ideia que eu tinha. Eu quis abraçá-la de coração com coração, de alma com alma… mas eu não fiz nada, apenas concordei desconfiada. Era bom demais para ser verdade.
Não vou poetizar e nem me prolongar mais no desfecho desta história, o que posso dizer é que eu e essa mulher, que hoje é minha Ìyálòrìsà, não éramos rebeldes sem causa. Em minha família, já dentro do Culto Tradicional Iorubá, vi uma alta Sacerdotisa de Exú, africana, pra lá de muitos anos de sua existência, nascida como cultuadora de Elegbará, que ao acordar canta e desperta os Orixás com sua voz que arrepia todo o nosso corpo, colocar a cabeça no chão para saudar o Orixá de uma Iyawo recém nascida. Desde que aqui cheguei, nunca mais vi um Orixá, nenhum, prostrar se diante de ninguém.
Resultado? Coração aliviado e em paz com a crença que escolhi para mim.
Por isso e por outros milhões de motivos, minha fé se renova todos os dias. Orixá NUNCA me deixou sem resposta. E o que eu dei a ele em troca? Apenas paciência.
Ire O Ifásolá
Imagem: by GREGORY COLBERT