Será Èrè/Erê uma memória de Ẹgbẹ́ Ọ̀rùn?
- Fernângeli Aguiar
- há 9 horas
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Todo pensamento que transforma começa pelo desconforto.
Entendi com o tempo que a fé possui lugares diferentes de ocupação dentro de cada um. A fé é o alicerce invisível para a sobrevivência de muitos, estrutura existencial e força de sustentação, e, por isso, muitas vezes a pessoa não se permite contrariar, acaba por ocupar um lugar de apego emocional, sem nenhuma racionalidade. A fé é capaz de nos fazer ter atitudes que a razão fecharia os olhos, no entanto, é ela capaz de operar verdadeiros milagres.
Neste texto do Meu Coração Africano, vou elencar fatos que podem desvendar uma possível origem dos Erê na Religião Afro-Brasileira, especificamente no Candomblé.
Há alguns anos pesquiso a origem dos Erê no Candomblé. A mais antiga que encontrei foi em "Os Candomblés da Bahia" (1948), de Edson Carneiro. Ele é o primeiro brasileiro a unir o olhar de cientista social e o pertencimento cultural afro-brasileiro. A obra de Edson Carneiro é considerada a primeira grande sistematização etnográfica e sociológica feita por um intelectual brasileiro negro sobre o Candomblé, com base em trabalho de campo e convivência direta com os Ilê da Bahia.
Os candomblés da Bahia e outras obras aqui citadas ainda moram no saber coletivo dos antigos e, em vários pontos, parece nunca ter sido questionado. Capítulo - Orixás meninos - pp. 83-84.
“Ibéjé (ou simplesmente Béji), os gêmeos são espíritos inferiores, tipicamente chamados orixás-meninos, muito populares na Bahia. Surgem sempre depois de um período de aflição para o estado normal. Os negros acreditam que todas as pessoas que têm santo têm também um ère — de Cosme e Damião, de Crispim e Crispiniano e de Alabá. Possuída pelo ère, a pessoa se comporta como criança, para divertimento geral. Durante as festas públicas, são saudados com a exclamação Ibejiô! O candomblé da Flaviana, atualmente sob a direção de Maria Eugênia, tem uma festa especial — a corda de Ibeje. Numa corda estendida de um lado a outro do barracão, penduram-se frutas, pedaços de cana, um boneco, um pião e outras coisas representando brinquedos de crianças. “
Vamos a mais referências bibliográficas sobre Erê no Brasil:
2. Ruth Landes — A Cidade das Mulheres (1938 / trad. brasileira 1967, Editora Civilização Brasileira)
Capítulo: “As mulheres e os deuses” – pp. 174–177. Landes descreve os ères (que ela escreve como erês), observando o comportamento infantilizado dos médiuns após a possessão e interpretando isso como um estado emocional e terapêutico, de alegria e desinibição.
3. Vivaldo da Costa Lima — A Família de Santo nos Candomblés Jeje-Nagô da Bahia (1977, Ed. Corrupio, 2.ª ed. 2003)
Capítulo: “Estrutura do culto e hierarquia iniciática” pp. 171–174 Vivaldo dedica um subcapítulo ao Èrè, descrevendo-o como o “estado de infância do orixá” e explicando que nenhum santo volta diretamente do transe, mas “passa primeiro pelo Èrè, brincando, dançando, comendo doces”. Ele o interpreta como fase de recomposição do axé e do equilíbrio emocional.
4. Juana Elbein dos Santos — Os Nagô e a Morte: Pade, Asèsè e o Culto Égun (1976, Vozes)
Capítulo: “As fases da incorporação e o retorno à consciência” - pp. 203–205 Juana insere o Èrè como parte da “transição do orixá ao eu”. Ela escreve que o Èrè é a forma lúdica e leve pela qual o iniciado “reaprende a ser pessoa”, após o transe do orixá — uma reintegração simbólica da vida.
A minha pergunta é apenas uma:
Qual a origem dessas crianças espirituais?
Esta é uma pergunta sem resposta definitiva.
Compreendo que, durante séculos, o Candomblé foi uma religião 100% oral, passada dos mais velhos aos mais novos. Quanto conhecimento se perdeu? Quantos conhecimentos sequer foram passados? Jamais saberemos.
"Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma."
Vamos aos sinais que me levaram para esta pesquisa:
>>> COINCIDÊNCIA LINGUÍSTICA
A palavra Èrè significa: ato de brincar, recreação, jogo, diversão.
No culto a Ẹgbẹ́ Ọ̀rùn, Èrè é um dos nomes para Ẹgbẹ́ Ọ̀rùn em algumas cidades. Assim como “Èrè ooo”, também se apresenta como uma saudação.
>>> COINCIDÊNCIAS RITUALÍSTICAS & LITÚRGICAS:
1. Veja os “assentamentos” de Èrè e de Ẹgbẹ́ Ọ̀rùn nas imagens a seguir:


2. As oferendas. Destaco aqui Edson Carneiro já citado acima:
“...penduram-se frutas, pedaços de cana, um boneco, um pião e outras coisas representando brinquedos de crianças. “
As mesmas comidas e elementos que oferecemos para Ẹgbẹ́.
3. Ẹgbẹ́ Ọ̀rùn é frequentemente associado às crianças, apesar de sabermos que também é composto por espíritos/pessoas de quaisquer idades.
4. Ẹgbẹ́ Ọ̀rùn se manifesta por meio do estado conhecido como incorporação ou possessão em pessoas adultas. Há registros sem fotos/vídeos de que algumas dessas incorporações possuem um estado infantil, travesso, rebelde e que algumas vezes trazem orientações espirituais para a comunidade em que estão inseridas.
Segundo o Bàbá Nathan Lugo, em Trinidad Tobago, o estado de transe é bem similar ao que conhecemos no Brasil no Candomblé, mas com o nome Rere / Wewe — que também vem da palavra Èrè. O Bàbá também afirma que há no culto uma mesa feita de doces, refrigerantes e brinquedos e que estes mesmos espíritos trazem recados e mensagens do mundo espiritual.
5. Muitos Erê, quando incorporados em seus filhos e filhas, relatam que são espíritos de crianças que morreram ainda jovens.
RELATO PESSOAL:
Osibata se manifestou pela primeira vez quando eu tinha 16 anos, eu ainda era abian. Dizia que não era criança, que era adolescente, que foi para Orun com 14 anos depois de uma doença. Erê de Oxum. Amável, brincalhona, sarcástica, porém rebelde, desafiava os mais velhos e vivia sendo ameaçada pela Ekedi mais velha da casa de ser colocada aos pés de Nanã.
No livro de Ayò Salami - “Ẹgbẹ́ - The Heavenly Mates of Every Human” - (Ẹgbẹ́ - Os companheiros celestiais de cada ser humano), página 16, ele escreve referindo-se a mortes causadas por Ẹgbẹ́ Ọ̀rùn:
“Algumas mortes misteriosas podem ser devidas a juramentos feitos com seus companheiros astrais.”
O que esclarece que nem todas as mortes causadas por Ẹgbẹ́ Ọ̀rùn estão necessariamente ligadas a Abiku.
Uma das comunidades, chamada EGBE IREKERE, é conhecida por pessoas que vêm para Ayé com uma promessa ao seu Ẹgbẹ́ de que morrerão em um dia específico, normalmente importante. Portanto, não estou com este texto afirmando que os espíritos de crianças que se manifestam como Erê são todos Abiku.
Para finalizar, vou mencionar apenas mais uma situação curiosa. Nós cultuamos Ẹgbẹ́ Ọ̀rùn para alegria em nossas vidas e o bem-estar físico e mental, o que me remete ao estado de espírito mencionado pelos autores brasileiros que menciono neste texto.
Termino sem certezas — apenas com possibilidades. Porque o tempo apagou as provas, mas não o encanto.
Ìyá Ifásọlá Ẹgbẹ́kẹ́mí
💛 Meu Coração Africano
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Linha de pesquisa muito boa. Àse!