Algumas pessoas tem o dom de nos emocionar com suas histórias. Elas conseguem despertar o que há de melhor em nós, e nos fazem olhar para o mundo com bons olhos, ao ponto de alentar o nosso coração e de nos dar mais motivos para seguir em frente e acreditar em nossos Orixás.Vou chamá-la de Vitória, pois este nome é bem apropriado.
Aos 11 anos de idade Vitória teve a certeza de que era adotada. Muitas coisas a partir daí começaram a fazer sentido em seu mundo de criança. Mesmo sendo muito bem tratada e amada pela mãe adotiva, Vitória sentia-se deslocada, ela sentia a mão pesada da vida em seu dia a dia com a rejeição do pai adotivo, devido ao seu gênero e sua cor. Vitória era mulher e negra. Ao encarar a verdade Vitória fugiu de casa, mas por sorte os pais conseguiram acha-la no mesmo dia.
Vitória tinha o amor de Dona Cora, sua mãe adotiva e enviada por Olorum, no entanto não foi o suficiente para acalmar a tristeza de seu coração, ao saber que tinha sido rejeitada e dada no mercado pelas mãos de sua própria mãe biológica.
O tempo e a vida lhe trouxeram mais detalhes da sua adoção. Ela descobriu que a mãe biológica morava em um antigo quilombo. Uma pequena aldeia no interior do Nordeste, pertencente a uma cidade que até a abolição, havia recebido mais de 150.000 mil escravos. Era lá que ela havia nascido. Filha de uma mulher que era ainda uma adolescente quando engravidou, que foi rejeitada pela própria família diante da gravidez. O pai dela seria um homem branco, que viajava de cidade em cidade devido ao comércio. Após anos ela descobriu que seu pai apenas soube da paternidade anos depois, e que ainda chegou a procurar a filha, mas não teve sucesso. O nome deles? Ela nunca soube.
Foi o irmão mais novo de Vitória, que ao andar no mercado em uma segunda-feira, viu Vitória sendo dada e foi correndo afoito contar a Dona Cora. Ele disse que tinha uma negrinha de 03 anos sendo doada no mercado. O marido de Dona Cora, era um imigrante Holandês, muito branco e grandão, ele queria outro menino como filho para ajudar nos negócios da família. Já Dona Cora queria uma menina e bateu o pé. Ela ficou com a negrinha, depois de fazer a mãe biológica da menina prometer que nunca mais voltaria para buscar a criança. Dona Cora colocou o nome da menina de Vitória, o mesmo nome dado a uma outra filha adotiva da mulher, que havia morrido ainda criança.
Vitória casou-se cedo, aos 17 anos. Mas a incompreensão e a angústia no peito demoraram muitos anos para passar. O sentimento passou apenas quando ela gerou do seu ventre os seus próprios filhos. Foi assim que ela pode entender e perdoar a mãe biológica, ao compreender a responsabilidade que nasce ao colocarmos nossos filhos no colo, juntamente ao medo de não conseguir. Até então Vitória sentia-se rejeitada pela mãe e a julgava pela sua atitude.
A gente sabe que não há porto mais seguro do que colo de mãe. Mães amansam o desconforto da nossa alma e nos convidam a nos amar todos os dias. Mesmo que Vitória tenha tido muita sorte, ao ser adotada por Dona Cora, o espírito dela ainda pedia uma resposta.
Com todas as descobertas, foi difícil Vitória aceitar que em seus documentos, todos os dados eram falsos. Ela nunca descobriu o seu verdadeiro nome, e até mesmo a sua data de nascimento era inventada. Nada do que há em seus documentos são reais. Para completar a frustração, o pai adotivo não quis registra-la, assim como Dona Cora também foi impedida de colocar seu nome em Vitóra. Em seu registro consta como mãe o nome de uma mulher que nunca existiu, mas com o sobrenome de Dona Cora.
Esta é só uma pequena parte da história da Vitória, hoje, uma senhora com filhos formados e prósperos que já lhe deram netos. Mulher do sorriso largo que encanta a todos com a sua calma, simplicidade e amor pelo sagrado.
Vitória encontrou sua força no Candomblé, uma força chamada Orixá. Iniciou-se na religião e foi consagrada a um cargo muito importante dentro da liturgia. Sempre foi muito abençoada por Exú, Xangô, Obá e Oyá. Devido as circunstâncias da vida, Vitória deixou o Candomblé com muita gratidão, mas seguiu para o Culto Tradicional Yorubá, onde continua cultuando seus Orixás
Ao ser iniciada em Ifá, ela levou sua filha Cecília, que não acompanhou sua mãe durante sua história no Candomblé. No ato da revelação do Odu de Vitória, o Bàbálawo que não conhecia a sua história, revelou que necessariamente ela precisaria ter um de seus filhos iniciados em Ifá. Por sorte, Cecília já estava lá.
Ao chegar a vez de Cecília receber o seu Odu, e sem que o Bàbálawo soubesse que ela era filha de Vitória, Ifá revelou um novo nome para Cecília, o nome do seu renascimento: Kòri (Lê-se Kôri).
Foi assim que Cecília, a filha do meio de Vitória, descobriu que estava destinada a cultuar Orixá. O culto deveria ser feito em nome da gratidão aos orixás, que ajudaram e deram força a Vitória silenciosamente, para que ela de fato fosse uma mulher vitoriosa. Ficou mais claro do que nunca que os Orixás apoiaram o crescimento daquela família e velaram para que todos os filhos de Vitória tivessem oportunidades na vida. Cecília tem como prescrição de Orunmilá iniciar-se em Kòri, o orixá da alegria, para que todos os descendentes daquela linhagem possam sempre ser criados pelas suas próprias famílias.
Kòri é um orixá feminino, que fez a travessia do Atlântico há pouco tempo, não é famosa como Iansã ou Xangô. Kòri faz parte da família dos orixás que promovem a integração com o outro e com a comunidade, que reconhecem a importância e as dificuldades de viver em sociedade. Orixás que são ligados a ancestralidade e capazes de promover no mundo a importância de termos família e amigos. Egbé e Kòri juntamente com outros Orixás passam a mensagem de que juntos somos mais fortes e capazes do que sozinhos, somos uma comunidade.
Kòri é um dos orixás que fazem parte do culto de Egbé. Seu culto é forte em terras iorubas e em Cuba, Kòri é cultuada como uma qualidade de Oxum.
Em um itan, conta-se que Kòri era um mulher que vivia na floresta, que um dia encontrou uma menina abandonada. Ela levou a criança para morar com ela e com muita paciência ensinou a criança todos os segredos da vida, fazendo com que a menina tivesse sucesso na vida.
Pesquisei a palavra Kòri e não encontrei nenhuma tradução literal do nome. Mas EU acredito que o nome possa ser uma contração entre a palavra Kò, que em iorubá significa: encontrar –se ou unir-se com a palavra Ori : cabeça. Referindo-se ao Orixá que possibilita o encontro do equilíbrio emocional para viver.
Por esta razão que a iniciação de Kòri é quase sempre indicada em casos como da Vitória, de crianças que foram abandonadas e/ou adotadas. Kòri pode ser indicada para adolescentes de uma forma geral. Afinal a adolescência é uma fase muito difícil de nossas vidas, apesar de linda ela pode tornar-se obscura. Um momento de nossas vida em que podemos nos desviar de nossos caminhos facilmente. O desafio de todo adolescente é ser inserido e aceito pela sociedade, sem estar vinculado aos pais. Nesta fase temos a necessidade emocional de encontrar o nosso lugar no mundo, e é a partir daí que muitos adolescentes, impulsivamente, acabam se perdendo, pois não possuem a capacidade de olhar para o futuro com sabedoria e por fim fazem tolices que podem custar suas próprias vidas.
Kòri é cultuada para trazer alegria e possibilitar que todas as fatalidades acontecidas na vida dessas crianças e adolescentes não tenham peso em suas vidas durante a fase adulta. Ela também impede que os infortúnios do passado, dessas crianças, não sejam desculpa para suas atitudes no futuro. Kòri é o Orixá da Juventude que devolve a alegria e o sentido de viver. Ao lado de Ibeji e Egbé protegem todos os abikus, e ao lado de Egungum e de Orunmilá atuam para corrigir o mau destino criado, fazendo com que aquela pessoa retorne ao seu caminho de ire.
Vitória hoje é uma mulher que transborda seu amor e sua gratidão pelo orixá, que conseguiu resgatar ainda em vida o culto aos seus ancestrais, mesmo nunca tendo os conhecido. Vitória teve Kòri presente em sua vida através de Dona Cora, e agora dará continuidade a essa história através de sua filha Cecília. O que aconteceu na vida de Vitória é sensível a alma de quem tem orixá na vida, depois de Vitória ter passado por mais da metade da vida, Kòri disse à ela: EU SEMPRE ESTIVE AQUI.
*Todos os nomes de pessoas desta história são fictícios para preservar a imagem de todas.
* Foto 01 - Fotógrafo desconhecido
* Foto 02 - Anna Larson