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A Experiência de Virar no Santo e da Possessão


A primeira vez que tive uma manifestação de Orixá eu tinha 12 anos. Foi no final de uma festa da fogueira de Xangô. Eu fiquei sozinha olhando a fogueira queimar, sentada na terra e olhando a beleza do fogo. De repente me deu uma aflição, uma confusão de sentimentos, uma vontade de chorar, meu corpo começou a tremer involuntariamente. Eu não cai no chão e nem fiquei inconsciente. Poxa ... eu tinha 12 anos , eu fiquei com muito medo. O choro era tão compulsivo e vinha tão láaaa de dentro, que comecei a gritar. É, eu gritei. Mais parecia um ataque de loucura. As pessoas tiraram sarro da minha cara pelo meu escândalo. Eu não queria que aquilo nunca mais acontecesse. Muita gente ficou desconfiada, me olhando torto como se eu estivesse fingindo. Depois desse dia eu fiquei com receio de que acontecesse novamente. Era uma honra. Mas não era para mim. Fiquei com muita vergonha.

Eu dei a minha obrigação de iyawo, rapidinho, apenas 14 anos depois. Eu havia criado uma grande expectativa, pois acreditava que ficaria 100% inconsciente. Todo mundo relatava que não lembrava de absolutamente nada. Tinha uma pessoa que me dizia que ela ficava durante todo o tempo da manifestação de Orixá, como se estivesse caindo em um buraco. Tinha uma outra que dizia que ficava sentada num quarto branco esperando que a voz de alguém a chamasse.

Quando foi a minha vez depois da feitura nada disso aconteceu. Parecia que eu tinha tomado um porre, que estava totalmente embriagada e tudo era muito confuso. Nunca fiquei totalmente inconsciente. Depois da manifestação? Eu esquecia a grande parte do que aconteceu e lembrava outras. Sabe aquele sonho que você lembra assim que acorda e depois nem com reza forte você consegue lembrar? Igualzinho.

Fui conversar com o meu Pai de Santo, disse a ele que tinha algo de errado comigo. Eu achava que Orixá não conseguia me pegar de verdade. Ele disse que cada um tinha uma experiência, mas que eu não devia comentar nada disso com ninguém. Mas como eu era uma menina muito obediente e fiquei encucada, fui em todos os iyawos da casa, e apenas uma pessoa manteve a história do quarto branco. Fiquei aliviada.

No entanto todas as vezes que ia ter uma festa, eu ficava com medo. Eu tinha medo dos passos e atos específicos para cantigas específicas. E o medo de errar? Então todas as vezes eu dizia à Oxum: Minha mãe, é contigo! Eu levei algumas broncas no roncó tipo: Sua Oxum não pode ser tão quente. Ela é uma rainha, uma dama e precisa ser leve o tempo todo. Me diziam isso mesmo eu sendo de Opará. Eu só pensava, como eu vou controlar isso? Cheguei a chorar e a bater boca de leve com uma pessoa, eu afirmava dizendo que eu não controlava. Ela disse que eu devia conversar com Oxum. Nunca funcionou. Não durava 2 meses. Enquanto alguns diziam que Oxum flutuava , outros implicavam com a atitude mais firme e guerreira dela. Aquilo era um pesadelo, porquê gerava um grande conflito. Uma vez me perguntaram: Será que é Oxum mesmo?

Eu ficava me perguntando, por que que EU, tinha que ensinar a Oxum como dançar? Por que haviam coreografias e atos ensaiados? Por mais lindos e maravilhosos que fossem, isso sempre foi uma dúvida. Nunca aceitei a história que Orixá tinha nascido e estava reaprendo. Eu, a rebelde.

A primeira vez que Oxum se manifestou dentro do Ìsésé foi bem estranho. A possessão, como se chama dentro do culto foi visceral. Deve ter durado em média uns 4 minutos, no máximo. A minha percepção do meio ficou confusa e meu corpo fazia atos que eu nem podia imaginar quais seriam os próximos, não tinha como prever. Sem coreografia, Orixá dança como quer. Minha consciência continuava alterada, exatamente como antes. Mas a descarga de energia, sem dúvida é mais intensa. Senti como se Oxum estivesse livre e quisesse apenas dançar e dançar.

Uma palavra? Libertador. Nada de certo ou errado. Na hora que a energia vai embora, ela vai de uma vez, sem avisar. E leva com ela todo aquele peso. Como diz meu Tio, Bábà Ricaule Aquino, do Ifá Aje, um verdadeiro ebó 0800.

Falando no Ifá Aje, eu fui no último osé da casa, e como todo osé, os orixás foram homenageados. Eu tive o privilégio de ver de perto a possessão de Egbé na minha prima de santo e amiga Núbia. Eu me lembro dela relatando a experiência da manifestação de Egbé e dessa vez, pude sentir. O olhar de poder (No culto é normal os orixás se manifestarem de olhos abertos e cabeça erguida, não determinamos NADA), a energia da possessão era como se ali não houvesse apenas um Orixá e sim vários ao mesmo tempo. Atos fortes, semblante sereno e de alegria ao mesmo tempo. Talvez as bênçãos que recebo de Egbé influenciem, mas eu me emocionei muito. Tive que me segurar para não ir lá e agarrar Egbé de tamanha a felicidade que me invadiu. Me segurar para não fazer a louca.

Se você me perguntar qual é o meu favorito, não vou poder responder. Sinto falta das festas de Candomblé e de ver Orixás contando as suas histórias através da música, durante 20 ou mais minutos, mas também amo a forma autêntica e intensa do Culto Tradicional. Não vou segregar ou julgar. Já há muitas pessoas fazendo isso pelo mundo. Não precisamos de mais disso.

Não importa se o seu Orixá se manifesta da forma a ou b. Vou convidar você a refletir comigo mais uma vez. É, e sempre será uma honra sentir a energia de um orixá no nosso corpo. É uma experiência íntima. Qual o direito que temos de julgar um(a) irmão(ã)? Qual é o parâmetro que temos para rotular a manifestação ou a possessão de um Orixá? Como podemos em meio a fofoca dizer se a possessão ou manifestação é ou não verdadeira? Meu Orixá não é melhor do que o seu e nem o seu é melhor do que o meu. Não tem mais Orixá no Culto do que no Candomblé, cada um cultua como aprendeu e como funciona. Está funcionando? Então está certo. Há respeito? Então está certo.

Peço as bênçãos de todos os orixás que nos deram o privilégio de um dia terem se manifestado em àiyé. Gratidão a cada um deles. Que o Meu Coração Africano, jamais deixe de pulsar.

Ire O

Ifasóla

Imagem: Voodoo Festival 2009 in Ouidah

Foto de luca.gargano em Flickr - https://www.flickr.com/photos/lucagargano/albums

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