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O Foco das Iniciações no Culto Tradicional Iorubá


A grande maioria dos textos que escrevo são fruto de reflexão, estudo, vivência e olhar atento. Tenho uma caixinha dentro na minha cabeça que tem uma etiqueta escrita: PARA TODA A VIDA. Nessa pequena caixa guardo ensinamentos que recebi de pessoas sábias, assim como aqueles que aprendi com os meus próprios erros e também os que aprendi com os erros alheios. Este último me faz poupar tempo de vida.

Ter feito o Itefá, a iniciação em Orunmilá, foi de fato uma morte. Uma transformação em que as minhas células ainda hoje estão em processo de reconstituição, e em um processo lento. Novas dúvidas e questionamentos surgem diariamente quanto a minha busca pessoal e de minha família. A conversa com o meu Ori se tornou rotina a ponto de me fazer sofrer várias vezes neste ano por epifanias deliciosas. Duas delas foi sobre o nome que recebemos na iniciação, assim como a prescrição das iniciações de orixás que recebemos.

Quando Ifá revela o nosso Odu durante o processo iniciático, talvez aquele seja o ápice do processo, pois naquele momento é revelado o nosso predestino. Trazido por Ori, revelado por Ifá. Somos lançados de frente com uma série de fatores que jamais pensamos em ter acesso ou conhecimento, de tão precioso que é. Abrimos a bagagem que esteve fechada durante toda a nossa vida até aquele momento. Temos a oportunidade de conhecer o que trouxemos da nossa ancestralidade para esta existência, assim como o que trouxemos de nosso Ori Ancestral. Além de precisarmos encarar a colheita do plantio que fizemos. Sabe aquela colheita obrigatória, que tantas pessoas falam? Os frutos de todas as nossas atitudes e a ausência delas. Tudo isso é esfregado na sua cara de uma maneira sutil.

Ao abrir essa mesma bagagem também encontramos lindos tesouros que os nossos ancestrais deixaram para nós, assim como nosso ori ancestral (o nosso Ori de outras vidas), e também os bons frutos das plantações desta vida. Afinal o plantil é opcional, a colheita não.

Com todas essas revelações, um novo ser nasce. É preciso mudar diante das obrigações que recebemos como uma Awo Ifá, e mudar mais ainda, com muito esforço diante de tudo que é revelado. É por isso que há o dizer: “Ifá é para todos, mas nem todos são para Ifá.” Afinal não são todos que estão prontos para essa grande empreitada.

Após o meu processo, a minha ficha foi caindo aos poucos, e na verdade ele cai até hoje, por isso digo que o processo é lento. Leio as minhas recomendações de Ifá e sempre acabo tendo um novo estalo.

Ifá não é direto. Uma coisa que ele não é, é direto. Ele fala através de versos. Lembra daquele desenho a Caverna do Dragão? Que no começo do desenho o Mestre dos Magos aparecia fazendo revelações que os adolescentes tinham que desvendar, e as coisas só iam fazendo sentido ao longo do desenho? Pois é. Nada me tira da cabeça que o Mestre dos Magos foi inspirado em Orunmilá, que todos nós somos aquelas crianças querendo voltar para casa, com uma missão. As ferramentas mágicas que eles carregam são os Orixás e nem te conto quem é o Vingador e a Tiamat...

Voltando da viagem. Foco. :)

Saímos todos de lá como Awó Ifá. Recebemos um Odu, os nossos ewós, a prescrição de iniciação em Orixás e um nome de Ifá. Esse nome, como diz meu amigo Ary Carvalho, carrega tudo que precisamos saber sobre o nossa própria história. Falo sobre este assunto no próximo texto.

As iniciações que nos são prescritas são para suprir nossas DEFICIÊNCIAS individuais, para nos ajudar a conseguirmos cumprir o nosso predestino. Elas não nos fazem melhor ou pior do que nenhum um outro devoto. Uma pessoa que precisa de inovação e de coragem para alcançar seu predestino pode receber a prescrição de Ogum e até mesmo de Xangô. Alguém que trouxe consigo mazelas da ancestralidade, pode receber a prescrição de Ìyá Mi, Egungun, Oro e até mesmo Egbé. Isso faz dela poderosa ou privilegiada? Não. Isso na verdade faz dela uma pessoa que tem muitos problemas para resolver nesta vida, e que Ifá está lhe dando uma oportunidade de corrigir. Há pessoas que trazem problemas tão sérios, que podem comprometer a sua existência, que a iniciação precisa ser feita na África, porque não existe o assentamento no Brasil ou material para ser feito por aqui.

As iniciações em Orixás dentro do Culto Tradicional, são ferramentas que recebemos para a nossa batalha individual. É por isso que no Culto Iorubá, diferente do Afrobrasileiro, as pessoas se iniciam em mais de um Orixá, e não necessariamente no seu Orixá de Cabeça”, aquela energia que já é predominante na gente.

Uma vez meu pai me disse uma coisa que me chocou um pouco e me deixou triste na hora, mas hoje entendo o motivo. Ele disse: “Dentro do Culto, um africano não confia plenamente em um brasileiro, apenas em outro africano”. Claro que eu achei aquilo um absurdo, e a minha reação adulta na hora foi tipo: Então porque eles não voltam todos para lá? Mais uma vez o tempo me mostrou o motivo e percebo que infelizmente eles tem razão. O motivo está enraizado em nós e está intrínseco em todos que vivem a cultura brasileira.

Vou explicar melhor.

Quando eu era do Candomblé, vi de perto que criamos disputas dignas do Jardim de Infância. Disputamos quantos colares temos no pescoço, como se aquele colar fosse o próprio Orixá pendurado alí no nosso cangote, tipo “ungido por Oyá”. Sabe: “Eu tenho você não tem? Então. Disputamos também quem pode usar rechilieu. Quem tá no algodão e não tem uma fitinha pendurada é tipo ralé. Fora quem tem 924928262 anos de iniciado e fala como se fosse o próprio Orixá. Sabe o que aprendi na filosofia ioruba? Que uma formiga morta tem mais valor do que essas coisas para Orixá e para Eledunmare. Acabamos de começar a Cultuar Orixá no modo Ìsésé Làgbá, os que cultuam a muito tempo, cultuam há no máximo 30 anos, e sabe o que nós brasileiros já estamos fazendo? Criando comparações. Como não dá para disputar roupa, anos de iniciado e nem a quantidade de colares no pescoço, começamos a disputar o número de iniciações que temos, ou que precisamos fazer, assim como se ela deve ser feita aqui no Brasil ou na África.

Como podemos ser tão competitivos dentro da religião a este ponto? Sabe o que nós brasileiros começamos a fazer na verdade? A disputar quem tem o problema maior. Parece engraçado né? Mas é sério. As pessoas começaram a disputar a quantidade de iniciações que possuem e se elas precisam fazer iniciação da África. Pra mim é a mesma coisa de tirar onda com o cheque especial no vermelho e o banco te ligando três vezes por dia te cobrando. Não faz sentido. Um dos motivos que me fez sair do Candomblé foi a disputa e a vaidade dentro da religião. Só que o problema não está no Candomblé, está no brasileiro. Deve existir uma casa que não tenha esse problema, que o Sacerdote não tenha permitido que isso se instaure, mas eu não a conheci.

Se você, assim como eu e alguns irmãos, não concorda que atitudes tão vazias preencham a nossa fé, não as alimente. Preserve a nossa fé dentro dos atributos de Obatalá, da pureza, da seriedade e da verdade. Acredito que todas as religiões podem ser boas para o seres humanos, mas somos nós, os próprios seres humanos, que as estragamos, seja com o fanatismo, separatismo, vaidade ou disputa. Ninguém precisa ser melhor do que ninguém, essa necessidade de ser melhor, é apenas um processo de autoafirmação, derivado de alguma história pessoal mal resolvida. Quem entra nessa briga, já entra perdedor. Diante do Universo somos todos iguais. O troféu que se ganha com isso é apenas o enfraquecimento da nossa religião, que deixa o sagrado de lado e dá palco para o profano e o que de nada serve.

Obs: A informações contidas neste texto referem-se ao Culto mais atual dos Ijo Orunmila. Em algumas regiões e famílias, como em Oyo, ao que se refere ao número de iniciações, não se aplica.

Ire O

Ifásolá Sówùnmí

IMAGEM: Se você conhece o artista e fotógrafo desta foto, por favor nos ajude a identificar para que os devidos créditos possam ser dados. :)

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